Thursday, June 12, 2008

"Os Fantoches do Estroina"


Maria João Franco/linólio/1985



Era o meu sonho: ir ao Estroina! Um anseio gritante dentre os meus anseios de criança.
“Irás ao Estroina, deixa lá!”
E eu ia ao estroina a sonhar: uma grande cara vermelha, luzidia, toda envolta em clarões de alegria e sonoras gargalhadas, no meio de fantoches, dos robertos que falavam, que corriam, que dançavam em rodas e rodas saltitantes…Inchavam-lhe as enormes bochechas a tocar uma corneta doirada e vermelha, atirada ao alto, estrondeando grandes sons que me enchiam os ouvidos infantis de um prazer vivo e maravilhoso.
Era a obsessão, a perdida paixão dos meus quatro anos: ir ver os fantoches à barraca do Estroina!
E um dia…
A feira voltara.
Só se falava nela e nos bonecos de barro, nas espingardas de lata, nas lindas bolas de cores variadas que desciam e subiam presas ao dedo por um elástico e nos fantoches do Estroina!
A minha mãe disse:”Amanhã vais ao Estroina, eu digo à Julita.”
Todos os minutos os respirei a pensar naquele instante glorioso.
De novo, a fulgurante corneta vermelha saiu de entre as bochechas pasmosas de força com que dotara o estroina do meu sonho e ouvi as vibrantes gargalhadas e alegrias.
Fui com a tal Julita. Era uma “grande” da minha rua.
Como foi longo o caminho! Ruas negras e compridas, com luzes muito brancas e pessoas que falavam; árvores e poças de água, muitas; e mais ruas se enfiavam a tardar-me o meu encontro, o meu encontro com o Estroina.
De mão agarrada à Julita, ia saltando e muito apressado, muito excitado a caminho do sonho.
No meio de um negrume viscoso, com raros pontos de luz, a Julita parou.
Parei ao lado dela. Olhei-a ansioso. A passos lentos, pusemo-nos à volta de uma barraca de madeira, toda fechada, muito escura e muito alta.
Era ali.
Com o punho fechado, a Julita foi bater umas tímidas pancadas nas tábuas negras.
Eu adivinhava, eu pressentia lá dentro grande fogo de alegria.
Sem notar de onde surgira, veio uma velha ao pé de nós, acachapada num xaile.
“Não é aqui a barraca dos fantoches?” – perguntámos.
Era.
Com a alma toda aberta, eu olhava e já estava começando a amar aquela pessoa, primeira aparição do mundo sonhado do meu Estroina, mas ela estava dizendo que não, que a porta se não abria, que não havia fantoches!...

Meti a barraca negra toda nos meus olhos.
A Julita puxou-me pela mão: “Vamos embora!”.
Fomos deixando a feira para trás. Qualquer coisa ia crescendo dentro de mim.
E a andar nos passos da Julita, perguntei-lhe porque é que não havia fantoches.
-“ Ela disse que o Estroina se enforcou…” respondeu a Julita.
A minha cabeça virou-se a olhar a barraca sumir-se na escuridão.
Julgo que sentia que apenas o Estroina estivesse melhor (qualquer mal lhe tinha acontecido!) lá voltaria eu pela mão da Julita.
Mas não. Cá dentro, muito no fundo do meu coração de criança,uma dor me dizia…que nunca mais veria o Estroina.

Miguel Franco
Leiria, 25 de Março de 1962





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